Bolsonaro representa facção das Forças Armadas que ganhou poder com a tortura

por Celso Rocha de Barros (*)

Jair Bolsonaro não representa o regime de 64. Representa sua dissidência extremista, que revoltou-se contra a abertura de Geisel. O ídolo de Bolsonaro não é o moderado Castelo Branco, que provavelmente gostaria mesmo de ter restaurado a democracia. Não é o Geisel, que matou gente, mas deu início à restauração. Não é nem, vejam só, o Médici.

O ídolo de Bolsonaro, o autor de seu livro de cabeceira (segundo ele mesmo disse no Roda Viva), a entidade a quem Bolsonaro consagrou o impeachment, é o torturador Brilhante Ustra. Com um santo protetor desses, não impressiona que Temer tenha dado o azar de receber o Joesley.

O culto a Ustra é lepra moral, mas não é só isso: é uma reivindicação de linhagem. Na convenção do PSL, Eduardo Bolsonaro comparou Ustra a Janaina Paschoal, possível candidata a vice na chapa de seu pai.

Janaina se disse chocada com a comparação, e ultra-bolsonaristas como Olavo de Carvalho pediram sua cabeça. O vice foi Mourão, que tem Ustra entre seus heróis. O discurso de Eduardo Bolsonaro foi um teste de lealdade.

Bolsonaro representa, enfim, a facção das Forças Armadas que ganhou poder quando a tortura se tornou parte importante do regime. Bolsonaro é o porão.

Leiam o Gaspari: os militares e policiais que controlavam do porão logo se tornaram bandidos comuns, que os generais temiam que instaurassem a baderna na hierarquia. Aproveitaram-se do direito de atuar à margem da lei para ganhar dinheiro. Um célebre torturador se tornou um dos chefes do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Outros se envolveram com esquadrões da morte, aquela turma que cobra dez para matar bandido e vinte para matar seu cunhado e mentir que ele era bandido.

Essa turma não queria voltar a ser guarda da esquina, não queria voltar a ser só capitão de Exército. Compraram briga contra a abertura de Geisel. Perderam. Ainda houve, entretanto, tempo de Geisel reconhecer o velho inimigo de cara nova: em entrevista ao CPDOC [Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da FGV], disse que Bolsonaro era um “mau militar”.

Bolsonaro não é o anti-Lula. Bolsonaro é o anti-Geisel.

Como combater o porão? Aprendendo com quem de fato já o venceu.

No segundo turno de 1989, Ulysses Guimarães deixou claro que apoiaria Lula se recebesse um telefonema dos petistas. O telefonema não veio. Lula até hoje se arrepende disso, e afirma que foi um dos maiores erros de sua vida. Foi mesmo. Só por essa, Lula já mereceu perder.

Lembrem-se: Ulysses era muito mais conservador do que a turma que hoje posa de “centro” no Brasil. Lula em 1989 era muito, mas muito mais radical do que Haddad jamais será. Collor era uma ameaça incomparavelmente menor do que Bolsonaro à democracia.

Mas Ulysses tinha os instintos morais certos, e sabia do que devia sentir ódio e nojo. Ulysses não era um idealista ingênuo. Se Lula vencesse, Ulysses jogaria para moderá-lo, e jogaria pesado.

Era uma raposa como poucas, não um desses Cunhazinhos one-hit wonders que só fazem sucesso por um ano. Jogaria contra o radicalismo petista com Congresso, mídia, Judiciário, o que mais estivesse à mão.

Mas na hora em que foi preciso, Ulysses apoiou Lula. Não fugia de guerra. Desse, o porão tinha medo.

Esse, sim, é mito.

(*) Celso Rocha de Barros é servidor federal, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford, Inglaterra. Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 22/10/18.


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