MP da ‘Liberdade Econômica’ retira direitos, enfraquece fiscalização e facilita descumprimento da lei trabalhista 

Fim do pagamento dobrado ao domingo, folga nesse dia só uma vez a cada sete semanas, camponeses sem descanso em épocas de safra por até 14 dias e empregados que não batem o ponto. A medida provisória da Liberdade Econômica (MP 881/2019),  votada dia (13) na Câmara dos Deputados, retira alguns direitos dos trabalhadores, mas mesmo os que fossem preservados não estarão garantidos: ao tirar poder da fiscalização e dificultar a cobrança na Justiça, o texto abre caminho para a impunidade, facilitando o desrespeito à legislação.

Medida recoloca o Brasil na década de 1930

O governo Bolsonaro consegue aprovar suas medidas absurdas e abusivas pela força dos bilhões de reais e cargos que libera à maioria dos parlamentares. “Por isso nossa pressão nas ruas e sobre os deputados e senadores, no Congresso e em suas bases eleitorais, tem de continuar, de forma incansável”, afirma o presidente nacional a CUT Wagner Freitas

 

O texto base da MP 881 foi aprovado nesta terça-feira por 345 votos a favor e 76 contra.

Editada em 30 de abril pelo presidente Jair Bolsonaro com o objetivo de facilitar o surgimento de novos negócios e desburocratizar o país, a MP passou a tramitar em caráter de urgência no Congresso Nacional, onde ganhou novos dispositivos, incluindo uma continuação da reforma trabalhista. A Repórter Brasil consultou 13 procuradores, advogados, auditores, sindicatos e associações, que levantaram pontos da medida provisória que podem complicar a vida do trabalhador (veja lista abaixo).

Uma das principais ameaças do texto é acabar com o pagamento das horas extras. Embora esse direito continue garantido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), a medida provisória “praticamente destrói” o controle de ponto, segundo nota elaborada por auditores fiscais do trabalho vinculados ao Instituto Trabalho Digno. Bater ponto deixará de ser obrigatório para empresas com até 20 empregados (atualmente, o limite é de até dez). Além disso, o texto amplia o chamado “ponto por exceção”. Por esse sistema, os registros de entrada e saída só serão feitos quando o trabalhador fizer um horário diferente do habitual – para qualquer tipo de empresa, bastando que seja assinado um acordo individual com o empregado.
“Isso é um convite à burla. Os empregados podem abrir mão da hora extra por medo de ter uma promoção negada, de uma sanção disciplinar ou de outros constrangimentos”, afirma o auditor Luiz Alfredo Scienza, vice-presidente do instituto e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O desrespeito ao pagamento das horas extras não é ruim apenas para o bolso do empregado: ele pode tornar comuns as jornadas excessivas, resultando em um aumento no número de acidentes de trabalho, segundo avaliação do secretário jurídico do Ministério Público do Trabalho (MPT), Márcio Amazonas Cabral de Andrade. “Os acidentes crescem exponencialmente nas últimas horas de trabalho”, afirma.

O maior custo de um acidente de trabalho é o social, causado ao trabalhador e à sua família, mas há também um impacto aos cofres públicos: a Previdência Social gastou quase R$ 80 bilhões para pagar benefícios decorrentes de acidentes de trabalho entre 2012 e 2018, segundo dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho. “Qual o interesse de se tirar o peso do bolso do produtor e botar no bolso do contribuinte?”, questiona Andrade.

O atual governo vem batendo na tecla de que a legislação dificulta o surgimento de novos negócios e a geração de empregos. No começo do ano, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a chamar a CLT de “fascista”. A capacidade do governo de reduzir direitos trabalhistas, porém, é limitada, pois parte deles são garantidos pela Constituição e podem ser considerados ‘cláusulas pétreas’, que não podem ser alteradas pelo Congresso. É o caso de férias, 13º salário, jornada de oito horas e pagamento de hora extra com acréscimo de 50%. Enfraquecer a fiscalização e a punição das violações pode acabar por cumprir indiretamente o objetivo de desregulamentar o mercado de trabalho.

Fiscalizar sem punir
A conquista e a retirada de direitos sociais sempre fez parte do jogo político, mas o ataque à fiscalização promovido pela MP “é inédito”, avalia Ricardo Quintas Carneiro, sócio do escritório LBS Advogados. “Há uma simbologia envolvida. Nenhum governo anterior atacou diretamente a fiscalização.”

O projeto amplia a permissão para a dupla visita dos auditores fiscais do trabalho, fazendo com que parte das grandes corporações possam ser apenas advertidas na primeira passagem do fiscal. Aumentar a dupla visita pode incentivar empresas a só cumprirem a lei caso um fiscal apareça, segundo avaliação tanto de procuradores como de auditores fiscais.

O texto também facilita a apresentação de recursos por parte da empresa, dificulta a interdição de locais irregulares e abre espaço para a politização dos julgamentos após a aplicação de multas trabalhistas, retirando de órgãos técnicos a palavra final sobre as autuações. Isso pode dificultar a inclusão de empresas na ‘lista suja’ do trabalho escravo, segundo auditores fiscais.

A MP também propõe uma disputa entre os órgãos do poder público para a assinatura de acordos com empresas infratoras, o que limita o poder do MPT de propor Termos de Ajuste de Conduta (TACs).

O Ministério da Economia afirmou que se pronunciará após a aprovação da medida.

Confira, abaixo, as principais mudanças propostas pela medida provisória relacionadas à questão trabalhista:

1. Empregado poderá trabalhar aos domingos sem pagamento em dobro
Uma das principais mudanças introduzidas pela medida provisória é a liberação do trabalho aos domingos e feriados para todas as categorias. O texto permite, inclusive, que professores possam dar aulas nesses dias. O projeto em tramitação continua garantindo que o trabalhador terá direito a uma folga semanal, mas ela só precisará coincidir com o domingo uma vez a cada sete semanas. Ao conceder descanso em outro dia, o empregador ficará dispensado do pagamento em dobro pelo domingo trabalhado. Na prática, trabalhar ao domingo não trará nenhum benefício para o trabalhador, nem financeiro.

Atualmente, a CLT diz que a folga semanal dos trabalhadores precisa coincidir com o domingo, exceto quando houver necessidade – caso do setor de transportes, hospitais ou restaurantes, por exemplo. A MP 881 acaba com a ideia de que o trabalho aos domingos e feriados seja uma exceção. A folga nesses dias garante a vida comunitária, permitindo o convívio entre pais e filhos, o lazer e a participação em atividades sociais ou religiosas.

“Se uma das metas do governo é proteger o instituto da família, isso está completamente na contramão. Com quem as crianças vão ficar no final de semana? Quando o marido vai ver a esposa se o domingo de folga deles não coincidir?”, questiona o procurador do trabalho Márcio de Andrade.

A MP 881 também libera os bancos para abrir aos sábados. Se as agências aderirem, os bancários podem ter que trabalhar um dia a mais.

2. Trabalhadores rurais ficarão sem folgas em época de safra
O projeto em tramitação é ainda mais penoso para o trabalhador rural: em época de safra, o trabalho aos finais de semana e feriados poderá ser exigido sem a necessidade de folga ao longo da semana.

“Isso pode levar o empregado a trabalhar 15 dias sem descanso semanal”, avalia Aristides Santos, presidente da Contag. Essa interpretação entra em choque com a Constituição, que garante o direito a um repouso semanal remunerado para todos os trabalhadores.

Para o MPT, a previsão de trabalho sem descanso “reduz o trabalhador rural à condição análoga à de escravo, permitindo sua submissão à jornada exaustiva”.

3. Contratos acima de 30 salários mínimos poderão perder férias de 30 dias e outras garantias da CLT
O projeto em tramitação também pretende excluir a aplicação da CLT para empregados com remuneração superior a 30 salários mínimos (R$ 29.940), por meio de contrato individual assinado na presença de advogados. Para eles, poderiam continuar garantidos apenas os direitos previstos no artigo 7º da Constituição.

Embora a Constituição garanta férias remuneradas a todos os trabalhadores, com adicional de um terço, é a CLT que determina que o descanso deve ser de 30 dias. Outras garantias que só estão na lei trabalhista e que podem deixar de valer para esses trabalhadores são os intervalos no meio da jornada – para almoço, por exemplo – e o descanso mínimo de 11 horas entre um dia e outro de trabalho, segundo o advogado trabalhista Antônio Fernando Megale Lopes.

Para quem ganha mais de 30 salários, o adicional de transferência – pagamento complementar para quem é enviado para outra cidade – e o salário-família também são benefícios que podem deixar de ser obrigatórios, assim como as jornadas especiais, garantidas a médicos e bancários, por exemplo. “Isso pode ser o início do fim dos direitos do trabalho”, afirma o procurador Márcio de Andrade.

4. Fiscal não poderá multar na primeira visita
Na visita do fiscal às empresas, um flagrante de problemas trabalhistas não corresponderá, necessariamente, a uma punição. O motivo é que o projeto de lei amplia o benefício da dupla visita. Quando o empreendedor tiver esse direito, a primeira visita do fiscal servirá apenas para orientá-lo. Só será possível lavrar um auto de infração se, em uma segunda inspeção, a empresa não tiver corrigido sua postura.

Hoje, a legislação restringe a dupla visita a companhias recém-inauguradas, leis novas e às micro e pequenas empresas. Nos dois primeiros casos, o prazo para adaptação era de 90 dias. Agora ele dobrou. Além disso, a MP acrescenta no grupo as empresas e locais de trabalho com até 20 empregados. Com isso, uma grande empresa do agronegócio pode se livrar de autuação se tiver equipes de colheita com menos de 20 trabalhadores rurais, independentemente do seu faturamento.

O projeto dá algumas exceções à dupla visita – caso de a primeira fiscalização encontrar trabalhadores sem carteira assinada, trabalho infantil ou trabalho análogo à escravidão.

5. Após multa, empregador poderá recorrer sem pagar e terá julgamento final não técnico
Mesmo com as limitações impostas ao trabalho dos fiscais, caso a empresa seja autuada, ela não precisará pagar a multa imediatamente se entrar com um recurso. O depósito do pagamento era obrigatório para a empresa recorrer, porém, com a publicação da Súmula Vinculante 21 do STF em 2009, ficou garantido o direito ao recurso sem pagamento da multa – o que o projeto, agora, quer transformar em lei.

Se o recurso for levado à segunda instância, ele deixará de ser julgado pela Coordenação Geral de Recursos, unidade formada só por auditores concursados. Pela proposta que está no Congresso, a palavra final passaria para uma comissão tripartite, formada por representantes do governo, das empresas e dos trabalhadores designados pelo secretário especial de Previdência e Trabalho, uma indicação política.

“O medo é que os recursos deixem de ser julgados com base em critérios puramente técnicos e passem a ser julgados com o recorte político”, afirmou um auditor fiscal do trabalho, que falou sob a condição de anonimato.

6. Politização dificultará inclusão de empresas na ‘lista suja’ do trabalho escravo
Como prevê a criação de uma instância julgadora menos técnica e mais submetida a pressões políticas, dentro do Ministério da Economia, a MP pode dificultar a inclusão de empresas na ‘lista suja’ do trabalho escravo. Isso acontece porque os empregadores só entram no cadastro divulgado semestralmente pela pasta depois que todos os seus recursos administrativos tiverem sido julgados.

O auditor fiscal Luiz Alfredo Scienza explica que os autos de infração trabalhista têm, em geral, valores baixos, o que faz com que grandes empresas prefiram, muitas vezes, pagar as multas em vez de questioná-las. O problema é quando, além do prejuízo financeiro, a infração pode causar um dano grave à imagem da companhia, como é o caso dos flagrantes de trabalho escravo. “Essa instância poderá derrubar um auto de infração de trabalho escravo. É uma medida extremamente grave”, afirma Scienza.

7. Trabalhador terá mais dificuldade de receber indenização na Justiça
Tentar recuperar verbas não pagas ou receber indenização por acidente de trabalho na Justiça também ficará mais complicado em caso de falência da empresa. A MP 881 aprofunda a separação entre o patrimônio da companhia e o dos seus donos. Ou seja, se a empresa fechar e ficar devendo para seus funcionários, apenas os bens registrados em nome da companhia poderão amenizar o prejuízo – os bens dos sócios ou administradores não serão considerados A única exceção é no caso de ficar comprovado que os sócios ou administradores cometeram fraude.

A medida provisória não livra apenas os sócios do pagamento das dívidas caso uma empresa tenha falência decretada. O texto também isenta outras companhias de um mesmo grupo econômico de pagar a conta. As construtoras, por exemplo, costumam abrir um CNPJ diferente para cada obra. Assim, caso o empreendimento corra mal, a construtora só arcará com o prejuízo em caso de comprovação de má fé.

Pela legislação atual, quando a empresa não tem bens suficientes para quitar suas dívidas, a Justiça do Trabalho pode fazer com que seus sócios ou que outras empresas do mesmo grupo arquem com o prejuízo. Saber desse risco faz com que o empregador tenha mais responsabilidade ao gerir seu negócio.

O advogado Ricardo Carneiro lembra que, hoje, muitos processos na Justiça do Trabalho já se encerram sem o pagamento ao trabalhador por causa da dificuldade de encontrar qualquer patrimônio que cubra as dívidas deixadas. Agora, a situação deverá piorar. “O objetivo dessas medidas é dificultar e inviabilizar o crédito trabalhista”, afirma o advogado Ricardo Carneiro.

8. MPT terá dificuldades para firmar acordos
Outra medida prevista na MP diz que o poder público só poderá firmar um único acordo com empresas infratoras. Com isso, os procuradores do MPT ficarão impedidos de assinar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) se o Executivo negociar com a companhia antes.

“A nossa investigação é demorada. O TAC é firmado depois de um inquérito civil, feito com total responsabilidade. Não se pode criar uma corrida maluca para ver quem firma o seu acordo primeiro”, considera o secretário jurídico do MPT, Márcio de Andrade. Para o procurador, a medida quebra a autonomia do Ministério Público, o que é inconstitucional. “Não pode haver uma sobreposição do poder Executivo em relação aos demais poderes.”

O TAC permite que a empresa assuma voluntariamente um compromisso formal de cessar eventuais irregularidades. Se não puderem negociar acordos, os procuradores do trabalho só terão a opção de entrar com ação civil pública, o que poderá sobrecarregar a Justiça trabalhista.

9.Fiscais não poderão interditar locais insalubres ou perigosos
A MP afirma que auditores fiscais não poderão pedir a interdição imediata de locais que apresentem riscos à segurança dos trabalhadores, contrariando decisão judicial em vigor. O texto diz que a interdição ou o embargo precisa ser decretado pela “autoridade máxima regional” da fiscalização. Atualmente, essa função cabe ao superintendente regional do trabalho, cargo ocupado por indicação política.

“O auditor fiscal tem estabilidade, porque é concursado, mas a autoridade máxima não tem. Além de diminuir a possibilidade de embargo, a medida coloca esse poder sob os cuidados de uma pessoa que pode ser exonerada a qualquer momento”, alerta o coordenador nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho (Codemat) do MPT, Leonardo Osório Mendonça.

A legislação atual possui formulação similar. No entanto, uma portaria editada em 2014 pelo extinto Ministério do Trabalho permitiu que auditores fiscais do trabalho peçam interdição ou embargo imediatos quando se depararem com situação de perigo iminente à vida, à saúde ou à segurança dos trabalhadores. A portaria foi publicada para cumprir uma determinação do TRT da 14ª Região (Rondônia e Acre), em resposta a uma ação civil pública apresentada pelo MPT em 2013.

Além do risco de politização, a mudança pode atrasar a adoção de medidas emergenciais para a segurança do trabalhador. “Se o auditor chega em uma obra e vê um andar que está sem proteção e pode causar o risco de morte, hoje ele tem o poder e o dever de interditar. Se a MP for aprovada do jeito que está, ele perderá esse poder”, explica o secretário jurídico do MPT, Márcio de Andrade.

 

* editado com informações: Rede Brasil Atual e CUT 


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