A Finlândia é um país referência em modelo educacional, conhecido mundialmente por manter altos índices em avaliações internacionais de educação. Há anos ocupa bons posicionamentos no Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa): na última edição, em 2012, o país conquistou o 5º lugar em Ciências, o 6º, em Leitura e o 12º, em Matemática. Somados a isso, a valorização do professor, que tem autonomia para trabalhar em sala de aula, e o incentivo às artes já são diferenciais no país, mas esse cenário promete ficar ainda mais interessante. Após quarenta anos, a Finlândia implantará um novo modelo de ensino que está sendo chamado de “fenômeno da interdisciplinaridade”, em que os conteúdos do currículo poderão ser abordados não mais por disciplinas, mas de maneira interdisciplinar. As mudanças visam atender às necessidades dos alunos do século 21 e atingirão todas as escolas do país. Elas começam, efetivamente, a partir de agosto de 2016 e podem estimular outros países a reverem seus processos de ensino e de aprendizagem. A Gestão Educacional conversou com Marjo Kyllonen, gerente educacional de Helsinki, capital da Finlândia, cidade que está liderando essa renovação, a fim de compreender melhor esse fenômeno.
Gestão Educacional: Para entendermos melhor esse fenômeno, a senhora pode explicar como é o sistema de ensino da Finlândia atualmente e o que está prestes a mudar?
Marjo Kyllonen: Temos matérias tradicionais em nosso currículo, como língua mãe [língua finlandesa], línguas estrangeiras, matemática, história etc. Essas disciplinas ainda estão disponíveis, e ainda estamos [contemplando] o currículo de nível internacional. O que acontece é que algumas escolas estão adaptando seus currículos de acordo com isso, mas de maneira mais holística, visto que as mudanças na sociedade atual estão nos empurrando para uma direção que nos mostra a necessidade de se ter uma visão mais holística de cada matéria. Dessa maneira, no currículo, as disciplinas tradicionais continuam existindo. No que diz respeito à implementação desse fenômeno, na Finlândia, se olharmos nosso sistema curricular, notamos que somos muito descentralizados. Os municípios têm ampla liberdade para trabalhar, de acordo com as diretrizes, ou seja, o Estado dá as diretrizes, mas a forma de implantá-las depende das autoridades locais. Essa é a verdadeira mudança: vamos ter esse “fenômeno da interdisciplinaridade” baseado na ideia de que ganhamos conhecimento sem dividir as disciplinas. Helsinki é a cidade que está liderando esse tipo de renovação. Os alunos, em vez de estudarem desta forma: esta é uma aula de matemática, esta é uma aula de inglês, esta é uma aula de ciência, estudarão esse fenômeno [de maneira interdisciplinar], e, quando eles estão estudando assim, com certeza reconhecem óticas de diferentes matérias. A abordagem é totalmente diferente. O aprendizado não é dividido em pequenos pedaços e as possibilidades são ilimitadas. É claro que os professores podem dar suporte aos seus alunos. Os professores têm papel importante no grupo e, nesse tipo de fenômeno, os professores não estão apenas ensinando do modo tradicional, mas dando suporte e estrutura para o aprendizado dos alunos.
Atualmente, qual é a média de horas que os alunos passam, na Finlândia, na escola? Isso mudará no novo sistema?
Marjo: Isso não mudará. Eles passarão o mesmo tempo na escola. Esse tempo depende do ano escolar e das notas que estão recebendo. Estabelecemos apenas quantas horas de estudo por semana eles devem ter. O mínimo para o primeiro e segundo anos são 19 horas; terceiro e quarto, 22 horas; quinto e sexto, 24 horas; e do sétimo ao nono, 30 horas por semana. Os alunos da educação infantil ficam 20 horas por semana, uma média de quatro horas por dia. Os alunos também têm atividades optativas, que são voluntárias. Temos um sistema escolar abrangente [conhecido como comprehensive school system, tipo de escola estatal em que todas as crianças estudam]. Independentemente da classe social, da situação econômica ou das competências, todos vão para a mesma escola, e isso continuará no futuro. Na Finlândia, praticamente não há escolas privadas. Em Helsinki há algumas, mas elas não podem cobrar taxas, o que as fazem atuar mais ou menos como uma escola pública. Nosso sistema educacional está construído na ideia de escola pública abrangente.
A Finlândia já apresenta excelentes resultados educacionais. Por que essa mudança está sendo considerada necessária?
Marjo: Nosso sistema educacional foi construído de modo diferente dos [sistemas educacionais] da Europa. Essa separação do aprendizado em matérias, na qual os professores falam e os alunos acompanham o que seus professores estão falando, não provém os alunos das competências que eles precisam no século 21. Os professores que estão agora na escola, por exemplo, professores de primeiro e de segundo anos, estão no mercado de trabalho do século 21. Precisamos renovar nosso sistema educacional para que fique adequado às necessidades do futuro. Também estamos reconhecendo que o ambiente, em Helsinki, por exemplo, tem se tornado mais complexo e multicultural. Agora vivemos em um mundo bem diferente, por isso precisamos de ferramentas diferentes para nossos professores, para aumentar o potencial deles. Há quarenta anos, tivemos uma reforma em nosso sistema educacional, em que entendemos que todo mundo deveria ter as mesmas possibilidades. É mais ou menos a mesma ideia de renovação hoje. Vemos que nossos alunos são bem diferentes do que eram antes e têm diferentes necessidades. Não podemos mais usar um sistema antigo. Para nós, está OK sermos bons, maravilhoso, mas nosso foco é [saber] como isso estará no futuro. Nós realmente queremos mudar a configuração da sala de aula e percebemos que os alunos estão mais motivados porque estão indo para a escola. Algumas mudanças em nossa sociedade ocorreram recentemente, e isso implica em mudanças nos processos.
Como está sendo a aceitação de gestores e professores? Os professores estão sendo capacitados para esse novo formato de ensino? Eles receberão algum bônus?
Marjo: Faz tempo que estamos vendo a necessidade de potencializar nosso sistema educacional. Tivemos muitas discussões, estamos dando pequenos passos antes dessa renovação curricular. E, sem o diretor e o professor, nada disso acontece. A maioria de nossos professores vê as necessidades, entende por que devem fazer as coisas diferentes, o que torna o processo mais fácil. Existe resistência de alguns professores, que têm medo do que acontecerá e precisam cruzar sua linha de conforto. No entanto, a maioria reconhece que algumas mudanças são necessárias, e damos suporte e treinamento aos professores. Além disso, escolhemos algumas escolas que servirão de modelo às outras instituições. Os professores podem ir lá e ver o que precisa ser feito e praticar. Todos os professores estão sendo treinados para essa nova abordagem, mas não há pagamento extra para aqueles que aderem ao método. É algo que cada um deve ser capaz de implementar. Há um sistema de recompensas para os professores que atingirem determinado nível. Esse sistema diz respeito ao modelo de coaprendizagem, pois a interdisciplinaridade é baseada na ideia de vários professores planejando e implementando o estudo do assunto juntos. Introduzimos esse modelo, primeiramente, em 2010 e o mantivemos em nosso sistema de recompensas. Então, aqueles que atingiram horas de aula de coaprendizagem foram recompensados. É um tipo de motivação para os professores que estavam dispostos a implementar essas práticas antecipadamente. Agora, esse modelo funciona para todos e não existe pagamento extra. Além disso, temos recompensas para as escolas em que vemos que há algo importante a ser mudado, então usamos esse sistema de recompensas nelas também.
Qual é o papel do governo nessa mudança?
Marjo: O governo nos deixa livres para trabalhar. Somos muito independentes. Helsinki é o maior fornecedor de educação de toda a Finlândia [a maior cidade do país, com o maior número de escolas]. É claro que precisamos seguir o que o governo diz, mas não é tão rígido.
Esse novo modelo já está sendo adotado em algumas escolas da Finlândia. Quais são os primeiros resultados em relação à aprendizagem dos alunos?
Marjo: Na Finlândia, não “testamos” nossas crianças. Temos um sistema totalmente diferente da maioria dos países. Acompanhamos como os alunos adquirem conhecimento. O aprendizado precisa ser significativo para eles e o importante é como eles estão aprendendo, e não apenas o que estão escrevendo no papel e depois vão esquecer. É um aprendizado muito mais profundo e nós focamos no entendimento dos alunos. Estamos observando e fazendo algumas pesquisas acadêmicas que mostram que os alunos se sentem motivados trabalhando desse jeito.
Como a senhora avalia o modelo de ensino que prioriza apenas os resultados em avaliações internacionais?
Marjo: Não deveríamos fazer isso, porque o processo de aprendizagem é mais importante. Por exemplo: você tem uma prova de Química. Se tiver boa memória, suas respostas serão perfeitas, você terá um ótimo resultado baseado em sua memória. Na pior das hipóteses, você está enchendo sua cabeça com conhecimento que colocará no papel e esquecerá. Aqui, nós estamos aprendendo [e buscando] processos por meio dos quais os alunos entendam. As competências não podem ser construídas com base em algo que você escreve no papel e esquece. Realmente, esse tipo de teste não tem sucesso. Nossa avaliação está sendo desenvolvida com foco no processo de aprendizagem.
Todas as escolas da Finlândia serão obrigadas a adotar o novo modelo? Qual o prazo para isso acontecer?
Marjo: Esse novo currículo começará a ser implementado em agosto de 2016. Há alguns elementos que ainda precisamos avaliar mais profundamente, e sei que há também outros municípios no mesmo caminho. Mas, considerando o currículo nacional, a partir de agosto de 2016 todas as crianças da Finlândia deverão ter, pelo menos, um período na escola em que estejam estudando com essa interdisciplinaridade, com esse fenômeno. Em Helsinki, vamos mais fundo, mas estamos apenas começando. Estamos indo em direção ao nosso objetivo em pequenos passos, mas determinados.
Quais resultados o sistema educacional da Finlândia espera alcançar com essa reforma curricular?
Marjo: A esperança é de que, no futuro, e isso não apenas em Helsinki, possamos construir uma cultura que permita a todos aprender, que os alunos realmente amem ir para a escola e aprendam de maneira significativa. Queremos aumentar nossas competências, levar [a educação] a um novo nível, nos transformar em uma cidade modelo, com boa qualidade de aprendizado. Sabemos que quando formos bem-sucedidos nisso nossos alunos estarão mais motivados, saberão mais, entenderão o que estão aprendendo e estarão melhores e mais rápidos para o futuro, eles terão as competências para a sociedade futura. Nós acreditamos fortemente que uma educação de boa qualidade é a chave para um futuro melhor, até mesmo aqui na Finlândia.
Entrevista publicada na edição de setembro de 2015.