O mito da estiagem 
de São Paulo

 
 
A água é um dos recursos naturais mais abundantes no planeta e as quantidades existentes sobram diante da necessidade humana. Mesmo considerando apenas as águas doces continentais, 3% do total da Terra, há muito mais água do que a capacidade humana de utilizá-la. Indo além, apenas a quantidade de água que precipita anualmente só na superfície dos continentes (cerca de 110 km³) já seria capaz, se fosse captada e armazenada, de suprir toda a humanidade. Considerando a água subterrânea, o Alter do Chão, maior aquífero do mundo sob a Bacia Amazônica, armazena água suficiente (86 mil km³) para abastecer a humanidade por pelo menos três séculos, já que ele é continuamente recarregado pela infiltração de água proveniente da atmosfera e da superfície. 
 
Os estoques de água doce são inesgotáveis, na medida em que são alimentados principalmente pelos oceanos, infinitos via evaporação e precipitação, ou seja, pelo ciclo hidrológico, que depende de forças físicas as quais o homem nunca poderá interromper. Enquanto existirem, o ciclo funcionará e os estoques de água doce nos continentes serão repostos indefinidamente. 
 
O alerta de que a água vai acabar, portanto, não tem fundamento. Obviamente que a água não se distribui equitativamente pelo planeta. Há regiões com muita água, normalmente na zona tropical, na qual a evaporação é maior, e regiões áridas, onde, por razões específicas da dinâmica climática, as taxas de evaporação são maiores do que a precipitação, gerando déficit de reposição de estoques de água doce. Esse não é o caso de São Paulo, cidade situada em uma região úmida, com elevados índices pluviométricos, em grande parte decorrente da umidade trazida do oceano pelas massas de ar. 
 
Enquanto o Sol brilhar, a Terra girar e a Lei da Gravidade não for “revogada”, as recargas de água doce na Região Sudeste estarão garantidas, em volumes muito superiores à nossa necessidade. 
 
Por que falta água em São Paulo?
Considerando apenas a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), há mananciais na parte norte da região, a (Serra da Cantareira), e em toda a parte sul, na região da Bacia do Guarapiranga, do Alto Cotia etc., além de reservatórios (represamentos artificiais) que formam um sistema de abastecimento. Além disso, São Paulo importa água de outras bacias, como a do Rio Piracicaba, e como planeja fazer com a Bacia do Rio Ribeira de Iguape. 
 
Ocorre que, embora haja diversas fontes de abastecimento para a região, elas não estão interligadas. Trata-se de um sistema desconexo, no qual, se falta água em um reservatório por um período – como tem ocorrido com a Cantareira –, não há como compensar esse déficit com a água dos outros. Os sistemas Alto Cotia e Guarapiranga, por exemplo, estiveram, em 2014, com níveis de água superiores ao da Cantareira, que sozinha abastece cerca de 8 milhões de pessoas.
 
Mas não puderam “socorrer” essa demanda por não estarem interligados. Havendo um período de estiagem natural mais prolongado, como tem ocorrido na Cantareira, a retirada de água tornou-se mais intensa do que a reposição natural dos estoques, daí o porquê de suas represas estarem secas. A gestão dos recursos hídricos não foi inteligente o suficiente para construir um sistema interligado que equilibrasse demandas e estoques. Se assim o tivessem feito, jamais faltaria água em São Paulo, pois o total de água existente em torno da RMSP é mais do que suficiente para atender à demanda. 
 
Outro fator auxiliar na compreensão da falta d’água em São Paulo refere-se às perdas, que estão entre 27% e 30% de toda a água tratada. Elas advêm, sobretudo, de vazamentos e de captações clandestinas, embora, nesse último caso, apesar da ilegalidade, não há o desperdício, não há perda de fato da água como há nos vazamentos. Alguém a está usando, só que sem pagar.
 
Ainda na dimensão técnica, outro aspecto que nos ajuda a compreender essa situação de escassez que algumas áreas de São Paulo estão enfrentando refere-se ao bombeamento da água dos reservatórios. A sucção do líquido atinge apenas as camadas superiores dos reservatórios, sendo o restante chamado volume morto, fora do alcance das bombas. Mais uma vez a gestão dos recursos hídricos não foi eficiente para prever que, em caso de anos anômalos de menor precipitação, haveria a necessidade de se bombearem as camadas inferiores – a previsão de anomalidades climáticas deveria ser considerada em um planejamento de recursos hídricos. A tentativa de corrigir a má gestão da água paulista chegou tarde.
 
Complementarmente, o reúso ganhou espaço no debate com a proposta de reservar a água potável apenas para os usos nos quais ela deve ser realmente limpa e própria para o consumo. Infelizmente, isso só ocorre no meio empresarial e comercial. A Sabesp, empresa de saneamento básico de capital misto, cujo maior acionista é o governo de São Paulo, elabora programas apenas para empresas, mas não para a população em geral, que não recebe água de reúso em seus domicílios. Assim, a mesma água potável que bebemos é a água que usamos para dar a descarga ou para regar plantas, o que torna a economia no ambiente doméstico limitada a ações como o aproveitamento da água de lavagem de roupa ou do quintal. Só resta ao cidadão exercer o seu papel usando a água com racionalidade, inteligência e parcimônia.
 
* Professor livre-docente do Departamento de Geografia da FFLCH - USP

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