A Receita Federal do Brasil divulgou os dados da Carga Tributária Bruta (CTB) para 2013 (1). A arrecadação tributária total de cerca de 1,741 trilhão de reais representou 35,95% do Produto Interno Bruto (PIB). Numa afirmação simples, sem maiores rigores técnicos, o Poder Público, via tributação, ficou com quase 36% da riqueza produzida pela sociedade brasileira em 2013.

Com a divulgação desses números, os grandes meios de comunicação veicularam inúmeras notícias com três enfoques basicamente (2): 1) foi o maior patamar na série histórica iniciada em 2004; 2) a presença do Brasil como a décima terceira maior carga tributária entre os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); e 3) quanto cada brasileiro pagou, em média, de tributos em 2013.

A divulgação da carga tributária bruta, da quantidade de reais arrecadados e da média de pagamento de tributos por cidadão esconde a profunda injustiça fiscal existente na sociedade brasileira. Com efeito, quando a análise envolve o volume de tributos pagos em função da condição socioeconômica de cada classe de contribuintes o quadro observado é, no mínimo, desolador.

No último dia 19 de janeiro, a equipe econômica do governo Dilma 2.0, anunciou várias medidas voltadas para o aumento da tributação sobre o consumo, com o “conveniente esquecimento” da oneração tributária do capital e da propriedade. Teremos aumentos: 1) da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), que incide sobre o diesel e a gasolina, atualmente zerada; 2) do PIS/Cofins sobre os combustíveis; 3) do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para empréstimos ao consumidor; e 4) do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), em função de certos ajustes na área de cosméticos (3). Na mesma linha, a correção “integral” da tabela do Imposto de Renda das pessoas físicas foi vetada (4).

Alinho, de forma bastante sumária, quase telegráfica, os principais traços condutores da profunda injustiça do sistema tributário brasileiro:

1) “uma tributação bastante concentrada no consumo (15,2% do PIB, em 2008), seguida pela renda (7,8%) e folha de pagamentos (6%), enquanto a tributação sobre operações financeiras (0,7%) e sobre o patrimônio (1,1%) é bastante reduzida” (destaques inexistentes nos originais) (5). “Segundo dados do Ipea, em 1996, famílias com renda até dois salários mínimos arcavam com uma carga tributária de 28,2%; em 2003, o ônus tributário elevou-se para 48,9%./Na faixa de renda familiar superior a trinta salários mínimos também houve elevação da carga tributária, mas em menor proporção, de 17,9% para 26,3%, no mesmo período” (6);

2) “os resultados indicaram que, mantendo todos os demais parâmetros constantes, a arrecadação tributária brasileira poderia se expandir em 22,9% caso fosse possível eliminar a evasão tributária [sonegação] cujo indicador médio para todos os tributos apontados neste trabalho foi da ordem de 8,44% do PIB” (destaques inexistentes nos originais) (7);

3) uma requintada coleção de benefícios fiscais principalmente para os detentores de capital. Destacam-se, entre eles: c.1) a isenção de imposto de renda sobre lucros e dividendos distribuídos aos sócios, abrangidas as remessas para o exterior, obra do governo Fernando Henrique Cardoso, mantida pelos governos Lula e Dilma; c.2) a redução do imposto de renda nas operações da bolsa de valores; c.3) a isenção do imposto de renda nas aplicações de títulos da dívida pública brasileira, implementada no governo Lula; c.4) a criação da esdrúxula figura dos “juros sobre o capital próprio” e c.5) a tributação exclusiva na fonte sobre os ganhos e rendimentos de capital. Não deve ser esquecida, como importantíssima forma de vantagem fiscal, a ampla possibilidade de planejamento tributário para redução da carga tributária pessoal ou empresarial ao alcance dos detentores de consideráveis posições financeiras, modalidades de riquezas em vertiginosa expansão no Brasil e no mundo;

4) os paraísos fiscais que funcionam como porto seguro fora do alcance do “leão” fazendário para onde são dirigidos enormes fluxos de capitais. “Os super-ricos brasileiros detêm o equivalente a um terço do Produto Interno Bruto, a soma de todas as riquezas produzidas do país em um ano, em contas em paraísos fiscais, livres de tributação. Trata-se da quarta maior quantia do mundo depositada nesta modalidade de conta bancária” (8).

5) fragilidade inaceitável da Administração Tributária, notadamente quanto aos recursos orçamentários, financeiros, humanos e materiais adequados para realização eficiente das atividades de fiscalização e recuperação de créditos públicos não pagos (9).

Assim, o sistema tributário brasileiro, altamente regressivo, funciona claramente como um “Robin Hood” às avessas. O imenso esforço arrecadatório é suportado majoritariamente pelos menos afortunados e beneficia, por intermédio de uma série de mecanismos devidamente institucionalizados, uma privilegiada minoria socioeconômica.

Não é de estranhar que parte considerável das profundas desigualdades socioeconômicas no Brasil e no mundo devem ser enfrentadas pela via da tributação. Nesse sentido, uma verdadeira reforma tributária, com caráter popular e democrático, deve fundamentalmente reduzir a arrecadação que atinge o trabalho e o consumo e aumentar consideravelmente as incidências sobre o capital e o patrimônio, inclusive com a criação do imposto sobre grandes fortunas (uma exigência constitucional convenientemente esquecida pelo “establishment”).

Recentemente, o badalado economista Thomas Piketty, autor do livro “O capital no século 21”, fez afirmações do seguinte tipo: “Não discutir impostos sobre riqueza é loucura” e “O Brasil poderia ter um sistema de imposto mais progressivo. O sistema é bastante regressivo, com altas taxas sobre o consumo para amplos setores da sociedade, enquanto os impostos diretos são relativamente pequenos.

As taxas para as maiores rendas é de pouco mais de 30%, é tímido para os padrões internacionais. Países capitalistas taxam as principais rendas em 50% ou mais. Os impostos sobre herança e transmissão de capital são extremamente reduzidos, apenas 4%. Nos Estados Unidos é 40%, na Alemanha é 40%. Não discutir a cobrança de impostos sobre a riqueza no Brasil é uma loucura. É tudo muito ideológico. Todos os países têm imposto sobre herança muito superiores ao brasileiro. Você não precisa ser de esquerda para defender essa medida. Por acaso Angela Merkel ou David Cameron são de esquerda?” (10).

Desconfie, portanto, de todos aqueles que genericamente reclamam da carga tributária elevada, genericamente bradam por menos impostos e genericamente fazem a defesa do contribuinte. Esse discurso abstrai os cortes socioeconômicos necessários, nivela indevidamente todos os integrantes da complexa e desigual sociedade brasileira e cria absurdas dificuldades para o necessário debate acerca da função redistributiva da tributação.

Aldemario Araujo Castro

Mestre em Direito, procurador da Fazenda Nacional, professor da Universidade Católica de Brasília e conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (pela OAB-DF). Site:


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