Por Germano Siqueira
Artigo publicado originalmente no Diap*
No atual e grave cenário político, temas importantes inserem-se na discussão cotidiana com grande relevância para os destinos do país. É de se observar com preocupação o fato de, em momentos de crise, voltarem à discussão iniciativas voltadas para o enfraquecimento dos direitos sociais e da independência da magistratura
Há quem entenda, por exemplo, que fases de transição seriam as mais apropriadas para o processamento de reformas da legislação trabalhista, de modo a aliviar custos empresariais e, assim, permitir que todos supostamente saíssem ganhando.
Essa visão parte do recorrente equívoco de considerar que leis antigas são necessariamente desconectadas do mundo contemporâneo e carecedoras de permanente exercício reformador. Mais do que isso, insiste no preconceito de que os magistrados não teriam sensibilidade para aplicá-las, adequando-as às necessidades dos novos tempos.
É preciso então dizer que, nestes mais de 70 anos, o texto original da CLT passou por quadras históricas diversas, por momentos promissores economicamente e por outros de crise como o atual, mas sem nunca ter sido idoneamente apontado como causa de reais entraves para os setores produtivos. Do mesmo modo, já sofreu vários ajustes desde a edição do velho Decreto-Lei 5.552, de 1º de maio de 1943, sem comprometer a sua essência.
Nesse mesmo sentido, não há nenhum indicativo convincente de que empresas “quebrem” por conta do modelo trabalhista brasileiro ou de que a economia tenha encolhido por conta da formalização do trabalho nos limites da CLT. Também é falso o discurso da baixa produtividade atribuindo-se essa “fatura” à existência de um mercado de trabalho regulado, quando se sabe que produtividade não é sinônimo de redução de custos de pessoal, mas, fundamentalmente, de investimento em educação básica, capacitação profissional, em rotinas de produção e em tecnologia. E, mais do que isso, resultante direta de condições de trabalho condignas, na medida em que, inversamente, a redução de direitos leva o trabalhador ao desestímulo e à ineficiência, jamais ao acréscimo de produtividade.
É necessário ainda registrar que, a rigor, o custo econômico direto do trabalho no Brasil é dos menores em comparação com vários outros países. Tomando por base o salário mínimo (e não é proporcionalmente distinto em outras faixas remuneratórias contratuais), o que encontramos é a prática, no mercado de trabalho nacional, de um salário-hora da ordem de R$4,00 (reais), enquanto, por exemplo, nos EUA paga-se pela mesma hora mínima o equivalente a R$23,31; na Alemanha R$ 25,16; na Espanha R$17,50; e, em Portugal, R$15,40.
Restrições de jornada e pagamento de adicionais de horas extras também existem em outros países, inclusive com vedação de carga máxima de trabalho anual ou trimestral. As críticas que se levantam, portanto, são impertinentes e descabidas.
O que se pretende com o discurso de ocasião, na realidade, tirando-se proveito da crise, é legitimar não pequenas e pontuais reformas, mas outras cuja finalidade é colocar no centro das discussões a ideia de reduzir e precarizar direitos como forma de atingir o coração da CLT, ou seja, o núcleo de um instrumento normativo enraizado no sentimento e na vida de gerações de brasileiros como um conjunto de normas que sempre presidiu a tutela das relações de trabalho.
Importante lembrar, aliás, que a própria Constituição de 1988 não veio para reduzir ou revisar direitos trabalhistas, mas para reforçar a importância de garantias projetadas na Consolidação das Leis do Trabalho, notadamente ao introduzir, no texto da Lei Maior, o seu artigo 7º, e elevar a plano constitucional a ordem de ideias defendidas por juristas como Americo Plá Rodriguez[1], que registrou: “O legislador não pode mais manter a ficção de igualdade existente entre as partes do contrato de trabalho e inclinou-se para uma compensação dessa desigualdade econômica desfavorável ao trabalhador com uma proteção jurídica a ele favorável [já que] o Direito do Trabalho responde fundamentalmente ao propósito de nivelar as desigualdades...” Anotação essa que se revela ainda mais importante nos dias de hoje[2] , quando as desigualdades sociais tendem a se tornar mais expressivas no Brasil e em todo o mundo.
O fato é que, após a promulgação da Constituição, os direitos sociais assentaram-se com vigor incontrastável no ordenamento jurídico nacional, lembrando José Felipe Ludur [3] as lições de Martins Catharino (“Constituição não é programa, nem projeto e nem programa de intenções”) e de Vital Moreira e J.J Canotilho, para quem “os direitos sociais são autênticos direitos fundamentais dos cidadãos, a que correspondem obrigações do Estado”.
Dessa forma, propostas como a terceirização sem limites (inclusive mantendo a desigualdade de direitos) - à maneira do PLC nº 30/2015 em tramitação no Senado -, e a prevalência (prejudicial) do negociado sobre o legislado evidenciam inequívoca ofensa ao patrimônio histórico, cultural, político e especialmente jurídico conquistado por nosso povo, a duras penas, e consolidado em um repertório de garantias sociais que não podem ser sacrificadas ou mitigadas sob o falso argumento de servirem, se reduzidos, à solução dos problemas econômicos do Brasil.
Muito ao contrário disso é preciso alertar para o fato de que o mercado conta, aproximadamente, com 12 milhões de trabalhadores terceirizados, contra 35 milhões de contratados diretos, sendo que a remuneração média dos “terceirizados” fica 30% abaixo daqueles outros. Isso sem falar da preocupação que se deveria ter com a questão da saúde e segurança laboral, já que de cada dez acidentes de trabalho no Brasil, oito acontecem em média com empregados terceirizados, de acordo com levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Em um panorama de aprovação do PLC 30/2015, que trata da terceirização generalizada (para atividades meio e fim), já referido acima, a tendência é, a curto e médio prazos, que a proporção trabalhadores diretos versus terceirizados se inverta, ou pelos menos haja forte, ampla e majoritária migração dos contratados diretos para o regime de terceirização. Isso sem mencionar a consequente redução sistêmica de salários em pelo menos 30%, além do favorecimento do aumento de jornada sem pagamento regular de horas-extras (como já ocorre hoje) e até mesmo a quintuplicação dos acidentes laborais.
É ainda importante nesse ponto esclarecer e corrigir com veemência a desinformação sempre repetida em matérias e informes publicitários dando conta de que o projeto em trâmite equipara os diretos dos terceirizados aos contratados diretamente, o que é totalmente falacioso. Ao contrário, com a aprovação da proposta nos moldes atuais, haveria ampliação dessa desigualdade hoje vivida pelos 12 milhões de terceirizados para um universo ainda maior de trabalhadores.
Analisando esses fatos, firmados em números e não apenas em discurso, é perfeitamente possível chegar-se à repercussão negativa do PLC nº 30/2015 na economia na casa de bilhões de reais por ano, como decorrência da redução global de salários circulantes, principalmente no varejo, nos pequenos núcleos de negócios e nas pequenas e médias comunidades, sem deixar de considerar que essa redução impactará negativamente nas contas públicas, contrariando o discurso daqueles que defendem a reforma trabalhista nesses moldes como solução para o crescimento econômico.
Vale lembrar também que, de 2005 a 2014 (sem considerar os precatórios), a Justiça do Trabalho pagou em todo o Brasil, principalmente em execução, mas também por acordos, a expressiva soma de 125 bilhões de reais aos credores, valores correspondentes a direitos não respeitados no curso do contrato de trabalho e que foram restabelecidos[4] e voltaram a circular de forma descentralizada no mercado consumidor.
O quadro da crise tende a se agravar, sabendo-se que em 2015 o número de novas ações trabalhistas já subiu de 2 milhões (média anual) para 2,6 milhões, com expectativa de que se chegue a 3 milhões, em meio tanto à crise econômica, quanto a mais grave crise orçamentária já imposta à Justiça do Trabalho, crise construída discriminatoriamente, por razões de ordem política, patrocinada pelo então relator do orçamento, deputado Ricardo Barros, ao argumento de que os juízes (e o Direito do Trabalho) são paternalistas e deveriam receber uma espécie de punição orçamentária.
Tal corte orçamentário constrange o Poder Judiciário trabalhista e sacrifica não apenas juízes, servidores e advogados, mas também os próprios trabalhadores e empregadores. Muitos tribunais estão às vésperas de findar seus orçamentos (em agosto), o que merece urgente correção jurisdicional[5], sob pena de se abrir perigoso precedente contra a independência da Magistratura e do Poder Judiciário como um todo (quais outros órgãos judiciários mais poderiam ser “sacrificados orçamentariamente ” em razão do que decidem?), de modo que não estariam mais a salvo de ataques da mesma espécie nenhum outro Órgão jurisdicional, inclusive os que lidam com crimes graves ou simplesmente decidam contra certos interesses no campo da política.
Na verdade, os magistrados do Trabalho têm diante de si, como sempre tiveram, uma elevada responsabilidade, conduta essa que contraria e sempre contrariou segmentos minoritários no Brasil. Trata-se do compromisso da Magistratura com a própria missão institucional desse ramo Judiciário, sempre pautada no dever de decidir conforme os princípios, a lei, a jurisprudência, a analogia, a equidade e por normas gerais de Direito, principalmente do Direito do Trabalho e, ainda, de acordo com os usos e costumes e o direito comparado, com prevalência do interesse público (art.8º da CLT), atribuindo o mesmo Diploma aos juízes ampla liberdade na direção do processo, sob o compromisso de velar pelo andamento rápido das causas (art.765 da CLT).
Nesse contexto, dizer que juízes do Trabalho são paternalistas é um erro primário de quem não entende o papel histórico da Justiça do Trabalho ou, entendendo, não se identifica com a sua natureza.
E é nesse limite que se tem como de grande importância também o livre convencimento, sobre o qual recai crítica inimaginável atualmente, como se livre convencimento fosse equivalente a arbítrio e não obrigatória expressão de convencimento manifestado de forma motivada e fundamentada.
Coatar o direito de livre construção do convencimento motivado dos juízes (especialmente de primeiro grau) seria o mesmo que amordaçá-los e reprimir a liberdade jurisdicional dos magistrados mais próximos do jurisdicionado, o que evidentemente não pode ser a interpretação minimamente razoável e conforme de nenhuma norma processual, muito menos aplicável ao processo do trabalho.
Em linhas de conclusão, parece certo que períodos de crise e muito menos “períodos de crise econômica” não aconselham a promoção de nenhuma reforma precarizante, especialmente quando dizem respeito a temas que não constituem os reais motivos das dificuldades vivenciadas pelo país. Muito ao contrário, a imensa maioria do povo brasileiro precisa que seus direitos sejam reafirmados, dentro de um modelo que promova a sua dignidade e segurança.
Apontar para a quebra de direitos e garantias sociais em momento como este é oportunismo político para tirar partido da situação econômica aflitiva e, assim, promover vantagens indevidas, para o que todos devem ficar atentos, inclusive para endereçar as respectivas cobranças.
Nenhum modelo de crescimento pode abandonar os alicerces de um mercado de trabalho civilizado e justo para todos ou apontar para o enfraquecimento da Justiça do Trabalho, sendo relevante lembrar que propostas de reforma devem observar a Constituição Federal, que prevê a construção progressiva de novos direitos no intuito de melhorar a condição social do trabalhador e não de reduzir as suas conquistas históricas e fundamentais.
(*) Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)