A professora Keilla Vila Flor encanta os alunos com ensinamentos que vão além dos livros didáticos. O olhar crítico sobre o racismo e a crença de que é possível construir um mundo mais justo são lições tão importantes quanto as previstas no conteúdo programático

 

 

A professora conhecida entre os alunos pelas camisetas de super-heróis e pelos turbantes coloridos acorda cedo. O despertador do celular é programado para apitar todos os dias às 5h30. Quarenta e cinco minutos mais tarde, ela sai de casa, em Águas Claras, toma o ônibus entre 6h20 e 6h25 e, em 25 minutos, está na escola onde ensina história para crianças e adolescentes, em Taguatinga.

Aos 23 anos, Keilla Vila Flor vai e vem cotidianamente comprometida com uma educação que vai além do que está nos livros didáticos. O combate ao racismo e a elevação da autoestima dos alunos, especialmente os negros, são lições tão importantes quanto o conteúdo programático. Dona de um levíssimo sotaque que mistura a Bahia e o Distrito Federal, ela começou a dar aulas há cinco anos. Tempo suficiente para conquistar a admiração dos estudantes e intervir de forma prática na luta contra o preconceito.A historiadora lembra um episódio marcante, ocorrido este ano. Certa manhã, no primeiro horário de uma turma do 6º ano, uma garota negra se inspirou em uma colega branca e decidiu passar batom e colorir as pálpebras com uma leve sombra cor de rosa. Porém, mal pôs os pés na sala, ouviu risadas de alguns colegas, crianças entre 11 e 12 anos. A menina ficou visivelmente triste e tirou, com as mãos, a maquiagem que tinha feito com tanto cuidado, ali mesmo na escola.

Keilla interveio imediatamente. Após uma conversa sobre por que a atitude do grupo estava errada, os que riram foram orientados a ir até a frente da turma e pedir desculpas por magoar a colega. E, no dia seguinte, lá estava a professora, recebendo a turma com o cabelo arrumado e o rosto maquiado de forma semelhante aos da garota. Não houve mais episódios como esse na turma.

 

Trabalho cadenciado
Ela sabe que não mudará a realidade de um dia para o outro, mas não abre mão do papel de constante educadora. “É utópico achar que vamos ter uma conversa com os alunos sobre racialidade e eles nunca mais vão reproduzir o racismo. É um trabalho cadenciado, aos poucos”, diz, sentada no braço do sofá da sala dos professores.

No mesmo sofá, está Caio Henrique Carvalho, aluno de 14 anos do 8º ano do ensino fundamental. Neste ano, graças a Keilla, ele passou a gostar mais de história, embora sua matéria favorita continue sendo matemática, o que admite um pouco constrangido. A confissão, porém, não diminui em nada o olhar encantado da mestre enquanto o vê falar do que aprendeu nos debates sobre o tema racial ao longo do ano.

Caio é um adolescente negro que demonstra tristeza ao contar que presenciou racismo entre os colegas. “Às vezes, as pessoas falam no calor do momento, sem consciência de que estão falando algo preconceituoso. Mas, a partir do momento em que uma pessoa não gosta de uma brincadeira, já não é mais brincadeira, é preconceito ou bullying”, ensina o menino.

A jovem professora, então, conta que a violência sofrida por crianças negras atualmente não é muito diferente da que ela viveu quando pequena. Filha de pai negro e mãe branca de olhos claros, Keilla cresceu ouvindo que seria mais bonita se fosse parecida com a mãe. No entanto, nasceu com a pele escura como a do pai, um homem alto e retinto, o que a fez passar por muitas situações de preconceito.
Olhar de desprezo
Um episódio da infância, vivido em Alagoinhas, cidade do interior da Bahia onde nasceu, segue presente na memória. Era feriado do Dia das Crianças. Ao lado de duas amigas, Keilla brincava com bonecas, vestida com o uniforme da pré-escola e com o cabelo dividido em duas tranças. Uma das coleguinhas era branca e a outra, negra. Foi então que uma mulher passou por elas, abaixou-se e tocou a cabeça da criança branca enquanto elogiava o cabelo.

“Depois, ela se voltou para mim e para minha outra amiga e nos olhou com desprezo. Tínhamos só 5 anos, mas, na mesma hora, percebi que aquela minha amiga tinha uma coisa que nós não tínhamos: a pele clara. Não sei como explicar, mas eu sabia que aquilo estava acontecendo por uma diferença racial”, conta.

É para construir um futuro em que cenas assim não ocorram mais que a professora trabalha. Além do colégio particular onde leciona, Keilla percorre escolas públicas e privadas do Distrito Federal, desde 2016, com uma palestra sobre a trajetória do povo negro no Brasil. Ela tem ainda uma intensa atuação na internet, sendo colunista da página Ativismo Negro, existente no Facebook e no Instagram.

Mesmo com a existência de leis que incentivam o ensino da história e da cultura afro-brasileira, ela lamenta que o conteúdo ainda seja muito pouco explorado nas salas de aulas. Abolida há 130 anos, diz, a escravidão — que trouxe ao Brasil de maneira forçada mais de 5 milhões de negros, tornando o país o principal centro do tráfico de pessoas das Américas — ainda deixa marcas na sociedade brasileira.

Por isso, Keilla gosta de enxergar, em cada um de seus alunos, uma nova oportunidade de construir uma escola e um país mais acolhedor. “Em todo primeiro dia de aula, eu digo para os alunos que estou falando com seres carregados de historicidade, que eles são importantes e têm o poder de mudar o mundo e a história.”

 

01/11/2019 Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia – DF. Cidades. Especial Conciencia Negra. Na foto Keilla Vila, professora de Historia.

 

via https://www.geledes.org.br/

 


Mais Lidas