Por José Geraldo de Santana Oliveira
A educação, mola propulsora do desenvolvimento social – assim reconhecida, em todos os países que já o alcançaram -, reconhecida pela Constituição Federal (CF), 1988, como o primeiro de todos os direitos fundamentais sociais – como se constata pela leitura do Art. 6º -; com a conivência e a cumplicidade do MEC, transformou-se em simples mercadoria, de baixíssima qualidade, no seu nível superior.
Este, que é o segundo e último nível de ensino, hoje, é dominado por grandes grupos econômicos, sem qualquer compromisso com a construção da cidadania e, paradoxalmente, com o desenvolvimento social. Tais grupos, que se concentram no Kroton/Anhanguera- com cerca de 20% (vinte por cento) de todas as matrículas-, Estácio de Sá, Ser Educacional, Anima e Unip, somente tem compromisso com o lucro: farto e fácil.
A conduta deles, de converter a educação em uma simples mercadoria, faz lembrar o Conto de João Ubaldo Ribeiro, “ O Santo que não acreditava em Deus”, pois, que atuam na educação, mas, nela não acreditam; só o fazem porque extraem dela vultosos dividendos financeiros. Ao contrário do personagem do Conto, Quinca das mulas, que trilhava os seus passos pela retidão, pela solidariedade e pela alteridade, o que levou Deus a tentar convencê-lo a ser santo, apesar de saber de sua incredulidade religiosa; os grandes grupos educacionais não cultivam nenhuma destas virtudes, ao reverso: renegam todas, sem exceção.
Em busca do seu Deus Sol (Amon-Rá): o lucro; fazem tabula rasa dos fundamentos, da República, em especial, os que se acham insertos no Art. 1°, inciso IV (valores sociais do trabalho e da livre iniciativa); no 6° ( a educação como o primeiro dos direitos fundamentais sociais); no 170, caput (valorização do trabalho humano e da livre iniciativa), inciso III (função social da propriedade), inciso IV (livre concorrência), inciso V (defesa do consumidor); e 193( o primado do trabalho como base da ordem social e o bem-estar e a justiça sociais, como objetivos desta).
É bem de ver-se que a transformação da educação em mercadoria é veementemente rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como se colhe do Voto proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) N. 3330, pelo Ministro Relator, Ayres Brito, aprovado pelos demais:
“….que a Lei Republicana tem a educação em elevadíssimo apreço… Esse desvelo para com a educação é tanto que o Magno Texto dela também cuida em capítulo próprio, no Título devotado a toda Ordem Social (Capítulo III do Título VIII). E o faz para dizer que ‘a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho’(art.205).
Pois bem, da conexão de todos os dispositivos constitucionais até agora citados avulta a compreensão de que a educação, notadamente a escolar ou formal, é direito social que a todos deve alcançar. Por isso mesmo, dever do Estado e uma de suas políticas públicas de primeiríssima prioridade. Mas uma política pública necessariamente imbricada com ações da sociedade civil, pois o fato é que também da Constituição figuram normas que: a) impõem às famílias deveres para com ela, educação (caput do art. 205); b) fazem do ensino atividade franqueada à iniciativa privada, desde que atendidas as condições de ‘cumprimento das normas gerais da educação nacional’, mais a ‘autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público’ (art.209, coerentemente, aliás, com o princípio da ‘coexistência de instituições públicas e privadas de ensino);..”
Noutro giro, não me impressiona o argumento da autora que tem por suporte o princípio da livre iniciativa, devido a que esse princípio já nasce relativizado pela Constituição mesma. Daí o Art. 170 estabelecer que ‘a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social (…)’. Aspecto que não passou despercebido ao Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, consoante os seguintes dizeres de seu parecer:
‘(…) a liberdade de iniciativa assegurada pela Constituição de 1988 pode ser caracterizada como uma liberdade pública, sujeita aos limites impostos pela atividade normativa e reguladora do Estado, que se justifique pelo objetivo maior de proteção dos valores também garantidos pela ordem constitucional e reconhecidos pela sociedade como relevantes para uma existência digna, conforme os ditames da justiça social. Não viola, pois, o princípio da livre iniciativa, a lei que regula e impõe condicionamentos ao setor privado, mormente quando tais condicionamentos expressam, correta e claramente, então conferindo concretude a objetivo fundante da República Federativa, qual seja:
I- construir uma sociedade livre, justa e solidária. (art.3º).
Acresce que o ensino é livre à iniciativa privada, certo, mas sob duas condições constitucionais: autorização para funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder Público (…)”.
O Ministro Joaquim Barbosa, hoje, aposentado, em seu voto de vistas, na Ação sob realce, que levou quatro anos para ficar pronto, ao concordar com o Ministro Relator, Carlos Ayres Brito, asseverou: “(…) a educação não é uma mercadoria ou serviço sujeito às leis do mercado e sob regência do princípio da livre iniciativa (…) Se a legislação franqueia a educação à exploração pela iniciativa privada, essa só pode ocorrer se atendidos os requisitos do artigo 209 da CF(…)”.
Os realçados grupos, para conseguir o domínio do “mercado educacional”, primam a conduta pela completa negação dos fundamentos, princípios e garantias retroapontados. O seu cotidiano caracteriza-se por:
a) sufocar a livre concorrência, pela formação de oligopólios;
b) desvalorizar o trabalho, mediante:
b1) contratos de trabalho exclusivamente horistas, com baixa remuneração, calculada apenas pelo número de horas de regência de classe (sala de aula), não se destinando, nem se remunerando, nenhuma para estudo planejamento e avaliação, como determina o Art. 67, inciso V, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)- Lei N. 9394/1996;
b2) ausência de carreira; quando muito, há gratificação simbólica pelo título acadêmico;
b3) junção de várias turmas, de períodos diferentes, em uma única sala, computando-se o trabalho como sendo de uma aula;
b4) redução semestral de carga horária e de remuneração, com a exigência de que os docentes a requeiram, sob pena de demissão;
b5) falta de remuneração de direito autoral e pelo repetitivo uso de imagem, no caso de educação a distância;
b6) contratação de tutor como administrativo;
b7) sistemático processo de demissão em massa de profissionais da educação escolar, inclusive de mestres e doutores, para a contratação de especialistas, com salários menores e condições de trabalho mais precárias, o que se caracteriza, indiscutivelmente, como dumping social;
b8) total desrespeito às convenções coletivas do local da prestação de serviço, em total afronta ao Art. 611, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ao falso argumento de que vale a de sua sede, notadamente, quando as condições nela previstas são inferiores;
b9) atraso de meses, na homologação de rescisões de contrato, impedindo os demitidos de sacarem o FGTS e de requererem o seguro desemprego, quando a ele fazem jus;
b10) exigência de outorga de poderes (procuração), para prepostos seus assinarem os termos de rescisão de contrato, com plena quitação de direitos, e em local diverso daquele em que foi prestado o serviço;
b11) recolhimento de contribuição sindical aos sindicatos de sua sede e não aos dos locais da prestação de serviços, em total afronta ao Art. 8º, da CF, e 582, da CLT; com o nítido propósito de provocar conflito entre sindicatos coirmãos.
A voracidade dos grupos econômicos educacionais assemelha-se à da cerca, personagem principal do instigante romance do escritor peruano, Manuel Scorza- com o título original Redobles para Rancas (Rufam os tambores por Ranca), e traduzido para o Português com o título “ Bom dia para os defuntos-”; comandada pela multinacional norte-americana Cerro de Pasco Corporation e pelos latifundiários locais, com o beneplácito e o explicito apoio do Poder Executivo, do Legislativo e do Judiciário.
No caso brasileiro, o monstro devorador não é a cerca, mas, sim, o oligopólio no ensino superior; e, o alvo não são as terras, mas, o primeiro e maior dos direitos fundamentais sociais: a educação, nos seus dois níveis.
Se não se adotarem medidas urgentes e contundentes, contra essa letal tempestade, em breve, o oligopólio do ensino dominará toda a educação, como aconteceu com o latifúndio no Peru, conforme relata, com profundo realismo, a obra retrocitada; e o que é pior: com as mesmas consequências, senão, físicas, mas, sociais, pois que será o fim da educação como direito fundamental social.
Com a finalidade de fazer o concreto diagnóstico dessa cruel realidade, e de, a partir dele, aprovar medidas conjuntas para combatê-lo, reuniu-se, em Brasília, na sede do Sinproep, no dia 9 de junho corrente, o Coletivo Jurídico das Contee, com a participação de sindicatos de professores e de auxiliares administrativos e de federações de 8 (oito) estados e do Distrito Federal.
Ao final da reunião, foram aprovadas, à unanimidade, as seguintes sugestões, à Contee, às federações e aos sindicatos:
a) assinatura de termo de cooperação entre todos os sindicatos, com a finalidade de atuarem conjuntamente, em defesa dos direitos dos professores e dos auxiliares de administração escolar, totalmente desrespeitados por estes grupos, como se acha narrado acima;
b) solicitação de audiência com o Procurador Geral do Ministério Público do Trabalho (MPT), para a apresentação de diagnóstico completo, sobre as realçadas questões, com pedido de instauração de inquérito civil público, para apurá-los, e, após, ajuizamento de ação civil pública, com o objetivo de coibi-las;
c) solicitação de audiência com o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), para, igualmente, apresentar-lhe o referido diagnóstico e para pedir-lhe a realização de audiências públicas, sobre as mencionadas questões.