É inegável que o nível de exclusão e miséria causado pelo neoliberalismo exige medidas urgentes que não fogem ao mero assistencialismo. Porém, tal assistencialismo se restringe ao acesso a benefícios pessoais (bônus financeiro, escola, atendimento médico, crédito facilitado, desoneração de produtos básicos etc.), sem que haja complementação com processos pedagógicos de formação e organização políticas.
Criam-se, assim, redutos eleitorais, sem adesão a um projeto político alternativo ao capitalismo. Dão-se benefícios sem suscitar esperança. Promove-se o acesso ao consumo, sem propiciar o surgimento de novos protagonistas sociais e políticos. E o que é mais grave: sem perceber que, no bojo do atual sistema consumista, cujas mercadorias recicláveis estão impregnadas de fetiche que valorizam o consumidor e não o cidadão, o capitalismo pós neoliberal introduz “valores” – como a competitividade e a mercantilização de todos os aspectos da vida e da natureza -, reforçando o individualismo e o conservadorismo.
Nossos governos progressistas, em suas múltiplas contradições, criticam o capitalismo financeiro e, ao mesmo tempo, promovem a bancarização dos segmentos mais pobres, através de cartões de acesso ao benefício monetário, a pensões e salários, e da facilidade de crédito, apesar da dificuldade de se arcar com os juros e a quitação das dívidas.
O perigo é fortalecer, no imaginário social, a ideia de que o capitalismo é perene (“A história acabou”, proclamou Francis Fukuyama), e que sem ele não pode haver processo verdadeiramente democrático e civilizatório. O que significa demonizar e excluir, ainda que pela força, todos que não aceitam essa “obviedade”, então considerados terroristas, inimigos da democracia, subversivos ou fundamentalistas.
Essa lógica é reforçada quando, em campanhas eleitorais, os candidatos de esquerda acenam, enfaticamente, com a confiança do mercado, a atração de investimentos estrangeiros, a garantia de que os empresários e banqueiros terão maiores ganhos etc.
Por um século a lógica da esquerda latino-americana jamais se deparou com a ideia de superar o capitalismo por etapas. Este é um dado novo, que exige muita análise para se implementar políticas que impeçam que os atuais processos democráticos populares sejam revertidos pelo grande capital e por seus representantes políticos de direita.
Este desafio não pode depender apenas dos governos. Ele se estende aos movimentos sociais e aos partidos progressistas que, o quanto antes, precisam atuar como “intelectuais orgânicos”, socializando o debate sobre avanços e contradições, dificuldades e propostas, de modo a alargar sempre mais o imaginário centrado na libertação do povo e na conquista de um modelo de sociedade pós-capitalista, verdadeiramente emancipatório.
Artigo: Frei Betto
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.