Infância Roubada: crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil

Este livro representa o cumprimento de um compromisso da Democracia Brasileira com uma geração pouco conhecida, formada por crianças e adolescentes filhos de perseguidos políticos e desaparecidos durante o período autoritário, de 1964 a 1985. Seus pais sumiram de uma hora para outra. A espera durou uma noite, duas, um mês, um ano ou mais. Ninguém sabia quando, e se, voltariam. Mesmo com tantas dúvidas, não deveriam comentar nada com ninguém. Cresceram à sombra do medo, angustiados pela incerteza e expectativa de reaparecimento do pai ou da mãe ou de ambos.

Este é o início do prefácio do “livro Infância Roubada: crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil”, fruto do trabalho da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. A obra é o relato de depoimentos nas audiências “Verdade e Infância Roubada” realizadas em maio de 2013 e contém histórias das mães e filhos de presos políticos, perseguidos e desaparecidos da ditadura.

De acordo com Adriano Diogo, ex-presidente da Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, o projeto nasceu da necessidade que a Comissão sentiu em elucidar fatos sobre a dimensão da violência cometida pela ditadura. Segundo ele, “se o inventário de violações de direitos humanos que nos foi legado do regime de 1964 é extenso e profundo, fato é que esse capítulo das violências contra crianças e adolescentes é uma das faces mais perversas desse poder repressor. São crimes contra a humanidade que devem ser apurados com a devida punição dos responsáveis”.

Hoje, aquelas crianças são adultos na faixa de 40 ou 50 anos, cujas histórias ainda não haviam sido contadas. Os depoimentos foram marcados por lembranças da prisão, do exílio, do desamparo, de questionamentos em relação às suas identidades, de medo, insegurança, isolamento, solidão e vazio que, em muitos casos, são traumas não superados.

Alguns depoimentos

“Muitas vezes quando ouvia meu pai escutar a Internacional em seu rádio pequeno, em seu quarto, bem baixinho, ficava uma pergunta no ar: por que ele tem de escutar o som tão baixo?”

“Mães e crianças ficamos mais de cinco meses presas. Para mim, representou uma eternidade. Sei que sofri muitas perdas, mas sempre me recusei a aprofundar nesta questão...”

“No que diz respeito à repressão política, não me lembro de nenhum evento especialmente traumático. Ainda assim, até hoje tenho pesadelos horríveis”.

“Tenho pensado muito sobre quem era meu pai e o tamanho da dor de tê-lo perdido, sobre o que significou ter crescido sem pai”.

“Meu avô reconheceu o corpo, e na hora do enterro, abriram o caixão, a minha mãe beijou-lhe a mão, eu olhei, fecharam o caixão, levaram, enterraram e nós voltamos para São Paulo. Foi uma coisa super rápida”.

“A ditadura nos tirou a infância, nos tirou metade da juventude, nos deixou com sequelas. Nos tirou nossos pais guerreiros, militantes e tios”.

“Impossível aceitar pessoas que mataram ocupem cargos públicos, sejam exemplos de cidadania, para gerações e gerações”.

“Eu gostaria muito de poder apagar esse momento do assassinato do meu pai da minha vida. Mas eu não posso, eu não quero, e eu não consigo. E eu não vou”.

“No momento em que, ou eu perdi a minha mãe ou na minha despedida, quando eu soube que eu não veria mais a minha mãe, mesmo estando no colo de uma pessoa que eu já amava, eu queria morrer”.

“Eu passava na revista feminina e aquilo era para mim uma coisa absurda. Eu era criança, tinha que abrir a boca, tinha que abrir as pernas, eles vasculhavam meu corpo todo para poder entrar”.

“Era muito difícil receber informações naquela época, as correspondências chegavam todas violadas, fotografias rasgadas e demoravam meses para chegar”.

“Até hoje eu sou uma pessoa completamente sem identidade”.

“Aconteceu de crianças realmente serem taxadas de terroristas, como se a gente fosse perigo para a sociedade. Crianças foram torturadas de fato, isso aconteceu no Brasil”.

“Eu tinha dois anos e três meses e fui tratado como Elemento Menor subversivo e terrorista”.

“Nunca mais soubemos dele, não se sabe até hoje o que aconteceu exatamente, como morreu e onde está enterrado o seu corpo”.

“A chegada na sala de tortura é uma coisa muito impressionante, não tem como descrever. Foi uma cena de horror. Eles disseram: tira a roupa. Vão se .... não vou tirar roupa .... nenhuma, eu respondi”.

“Rasgaram minha roupa toda, me puseram no pau de arara de novo e foi barra pesada, pancadaria pesadíssima. Foi quando quebraram minha vértebra. De tão furioso da porrada que levou, o Davi ficou em pé em cima do meu peito”.

“Muitas vezes eu pensava: eles vão matar a gente, a gente vai ficar preso aqui. Na saída do prédio os policiais ainda ficavam apontando os fuzis para nós”.

A dor da lembrança

De acordo com Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade, “o que mais impressionou neste trabalho foi que as crianças eram enquadradas, fichadas e fotografadas como terroristas. Casos impressionantes como estupro de crianças, internadas na Febem de Batatais, interior de São Paulo, estão sem punição.   As vítimas do esquadrão da morte não eram vítimas da repressão política e sim da repressão social. Os internos eram tratados da mesma forma que os presos comuns eram tratados nos presídios de extermínio”.

Artigo:Tatiana Merlino, jornalista da Ponte, editora e organizadora do livro “Infância Roubada”

André tinha três anos. Priscila, dois. O ano era 1968. Mês de dezembro, 13, dia da promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5). A casa onde moravam, em Pariconha, interior de Alagoas, foi cercada. Foram acordados por gritos e pancadas nas portas e janelas. A pontapés e golpes de fuzis, soldados arrombaram a porta. Encontraram duas mulheres, Maria Auxiliadora da Cunha Arantes e Rosemary Reis Teixeira, ambas militantes da organização Ação Popular (AP), de resistência à ditadura civil-militar. Junto com elas, seus filhos: André e Priscila, filhos de Maria Auxiliadora. E Rita, filha de Rosemary, aos cinco. “Hoje eu diria que foi um filme de terror”, conta Rita de Cássia, funcionária pública que vive em Goiás.

Mães e filhos foram presos e ficaram detidos por cinco meses. Passaram pelo Dops de Maceió (AL), pela Cadeia Pública, pela Escola de Aprendizes de Marinheiros e pelo Hospital da Polícia Militar. No pátio do hospital, em meio ao lixo, ratos enormes circulavam por entre pernas e braços de gesso, curativos, caixas usadas. Para atenuar a situação diante das crianças, as mães apelidaram os ratos de Jerry [personagem de animação da série estadunidense Tom & Jerry].

Certa vez, na Escola de Aprendizes de Marinheiros, onde estava presa, Maria Auxiliadora ouviu o seguinte do oficial do dia: “Estive conversando com minha esposa e como não temos filhos, resolvi pedir que a senhora me dê seu filho. Podemos criá-lo muito bem. Olhe bem para a senhora. Que futuro a senhora tem? Seu marido está preso, a senhora está presa, ninguém da sua família apareceu, não vai ter condição nenhuma de criar essa criança”. Hoje, 46 anos depois, André é doutorando em ciências do desporto, professor universitário e funcionário do Ministério do Esporte.

 

“Bebê branco”

Em junho de 2009, Lia Cecília viu uma matéria num jornal cujo título dizia “Crianças sequestradas na guerrilha do Araguaia”, onde falava-se da existência de um “bebê branco” que poderia ser filho de um guerrilheiro, que teria sido sequestrado pelas Forças Armadas e entregue à adoção. Embora soubesse desde os 9 anos de idade que era filha adotiva, nunca soube quem eram seus pais biológicos. Adotada por uma família local, a história que ouvira desde a infância era que, quando bebê, em 1974, fora deixada por um delegado e um soldado num orfanato de Belém (PA), com o corpo cheio de picadas de inseto.

Foi então que, aos 35 anos, instigada pela matéria sobre o “bebê branco”, procurou o jornal, que a colocou em contato com Mercês Castro, irmã de Antônio Teodoro de Castro, guerrilheiro do Araguaia desaparecido em 1974. Mercês, que desde o desaparecimento do seu irmão empreende uma incansável luta para resgatar a história e o corpo de seu irmão, ficou sabendo da existência de uma filha de Antônio Teodoro. Após exames de DNA, ficou comprovado que Lia é filha do guerrilheiro, que usava o condinome de Raul. “Eu sou a prova de que mesmo na guerra existiu um grande amor”, afirma Lia.

Nova Edição

O livro “Infância Roubada” foi lançado em novembro de 2014 e distribuído para bibliotecas, sindicatos, escolas, câmaras municipais e entidades sociais. De acordo com Adriano Diogo, uma nova edição está sendo negociada com a Assembleia Legislativa de São Paulo. Desta vez para ser comercializada.

“É preciso que todos conheçam essas histórias e que a sociedade saiba a verdade sobre a ditadura militar e o que esse período representou para o País”, afirma Diogo.

Ele lembra a importância da continuidade do trabalho, para que os responsáveis por esses crimes sejam punidos. Além disso destaca que os professores devem levar o assunto para a sala de aula esclarecendo os alunos sobre a real “história do Brasil”.

 

Cântico da Esperança

Rabindranath Tagore

Não peça eu nunca para me ver livre de perigos, mas coragem para afrontá-los.  

Não queira eu que se apaguem as minhas dores, mas que saiba dominá-las no meu coração.  

Não procure eu amigos no campo da batalha da vida, mas ter forças dentro de mim.  

Não deseje eu ansiosamente ser salvo, mas ter esperança para conquistar pacientemente a minha liberdade.  

Não seja eu tão covarde, Senhor, que deseje a tua misericórdia no meu triunfo, mas apertar a tua mão no meu fracasso!

 

 

 


Comentários  

#1 Elisabete da Silva S 10-01-2024 22:50
Meu pai foi um preso da ditadura militar sofremos muito gente ele ficou 45dias no Dops no centro de São Paulo à minha mãe ficava noite e dia na porta do presídio. Nós éramos em 6 crianças todos pequenos o meu irmão o mais velho tinha 7 anos pensa que desespero,você não ter sua mãe em casa seu pai. Olha eu chorei chorei muito.
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